terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Rupturas

RESUMO:
Os autores procuraram, de forma breve, situar a psicanálise dentro de um contexto histórico-cultural desde o seu surgimento com Freud até os dias atuais. Mostram como esta é mesmo fruto de uma ruptura com as ciências e valores tradicionais e que seu trabalho hoje, como outrora, projeta-se na linha de frente de necessárias rupturas com um estado de coisas que transtorna a existência do indivíduo.

I 
A modernidade caracterizou-se pelo abandono das formas clássicas, consonantes e harmônicas, bem como pelo irromper do espírito dividido em contradições. Na aurora deste período nasceu a psicanálise. Freud observava os sonhos e deles extraía a estrutura e a dinâmica da vida mental, descobrindo, através deles, o funcionamento da vida de vigília (Herrmann, 1979). Promoveu, assim,com seu método de investigação, uma ruptura com o pensamento científico tradicional. Seu método de pesquisa foi revolucionário, desde o momento em que tomou a si próprio como objeto de suas observações. Na publicação desse trabalho investigativo, ele revelou não apenas o espírito científico de um pesquisador, mas a estética de um escritor.
Noemi Kon (1996), estudiosa da obra de Freud e de sua relação com a modernidade, nos fala que este pesquisador/escritor liberou sonhos e paixões para que reconduzissem a razão, possibilitando à sua obra a emergência simultânea de ficção e ciência (Kon, p.51). A proposição de Freud (1933) sobre as pulsões como “entidades míticas, magníficas em sua imprecisão”, afirmava essa relação entre a ciência e a imaginação em suas descobertas (Garcia-Roza, 1986). Contra o objeto e o método da ciência de seu tempo, Freud inaugura um novo destino, já que a partir daquele momento a intimidade do cientista dirige seu olhar e é objeto de sua atenção (Kon, p. 70). Assim, pela ousadia de observar aquilo que se lhe ocultava (o Inconsciente), ele chegou à descoberta da psicanálise. A “Interpretação dos Sonhos” é o testemunho disso. Mais que nos sonhos de outrem, ali ele mergulhou nos seus próprios e os revelou. Por essa época, comunicou a Fliess: “A Psicologia está avançando de uma maneira estranha, está quase terminada, redigida como que num sonho”. Referia-se à “Interpretação dos Sonhos”. Segundo depoimentos de familiares a seus biógrafos, Freud encontrava-se nesse período num estado semelhante ao oníric (Mahony, citado por Kon, p.143). A autora comenta a informação acima propondo que nessa fase Freud sonhava para escrever e escrevia para sonhar. Seu livro dos sonhos é assim vivido como proveniente de uma escrita que lhe escapa [...] e que tem, também como no caso dos escritores criativos, seu material originário de suas próprias lembranças e desejos infantis (Ibid., p.143).
A psicanálise nasceu rompendo com os sistemas científicos tradicionais de observação e pensamento, colocando num mesmo plano, pela primeira vez no palco das ciências, a paixão e a razão, o sonho e a vigília, a sanidade e insanidade. Para além do racional, desvelaram-se as forças do irracional, da sexualidade e da paixão. Freud desaloja a consciência e inclui os conflitos do eu (Kon, p.69). Ruptura é, então, raiz e tradição da psicanálise, está entranhada em sua origem e em sua prática: na clínica, o método clássico de decomposição do discurso leva à descoberta de novos sentidos e de novas questões. Ou seja, rompe-se com o território da razão para redespertara paixão para que esta, por sua vez, reconduza a razão; abre-se passagem pelo visível para que o invisível se desvele e redirecione o olhar; penetra-sena consciência para se estabelecer uma interlocução com o inconsciente promotora de transformações na consciência.
Destes movimentos dialéticos, novas e imprevisíveis proposições teóricas e técnicas se dão: novas combinações promovem novos conceitos que podem, então, dar abertura a novas configurações. E assim, novas articulações da teoria clássica com as situações clinicas atuais promovem novos sistemas teóricos, abertos a novas combinações. Rêverie e memórias-sonho (Bion, 2006) passam a ser qualidades da escuta analítica.
Nestes termos, o fazer do psicanalista através de sua escuta e de suas interpretações, se dá pela abertura de fendas no campo conhecido do analisando para fazer emergir o desconhecido: com isto, ele desfaz ligações fechadas e saturadas e promove dimensões novas de pensamento, abalando crenças sedimentadas e acionando um novo modo de ver e pensar. Analisar, portanto, será desarticular o já sabido para promover um novo saber, uma nova compreensão, tanto para o paciente quanto para o analista. Será afastar-se do conhecido e suportar a falta de um novo sentido. Chuster (1999), referindo-se ao fechamento de sentido na compulsão de repetição diz que é “na ruptura desse fechamento que se instala o processo analítico” (p.15).
  
II 
Vinãr (2009), analisando a Pós-modernidade, propõe que esta se caracteriza por uma velocidade de mudanças de crenças e de valores que desestabiliza um equilíbrio antes mantido entre o antigo e o novo, provocando uma crise tão profunda de referenciais, especialmente nos jovens, que “exige a cada sujeito um maior trabalho no parto de sua singularidade” (p. 53). Este autor aponta para uma mudança de mentalidade em relação ao efêmero, ao transitório e ao definitivo. Com a contemporaneidade, caracterizada por uma crise de referências, o mesmo propõe como função do trabalho analítico reabrir um espaço que integre presente, passado e futuro, este “suprimido pela urgência e frenesi de uma atualidade escaldante” (p.53). Compreendemos que desse modo a vida pode se abrir para uma experiência mental, na construção de uma história que se segue em compreensão aberta e criativa destas experiências  (Bollas, 2002).
Bauman (2008) nos fala da contemporaneidade como o tempo dos medos e da falta de esperança, diferentemente de épocas passadas em que havia um sentimento de expectativa de desenvolvimento progressivo, onde cada dia poderia ser melhor do que o anterior. Atualmente a confiança na progressão foi substituída por um constante sentimento de ameaça pela aceleração dos acontecimentos. Época dos “tempos líquidos”- porque tudo muda rapidamente-, nada é feito para durar, para ser sólido. Há uma busca de prazer eterno e de evasão da experiência de dor resultando, entre outras coisas, na obsessão pelo corpo ideal, no culto às celebridades, na insegurança e na instabilidade dos relacionamentos amorosos. Tempo do “cada um por si”.
Poderíamos pensar na gama de manifestações atuais de culto ao corpo, das relações com seus objetos internos e externos, pautadas numa violência, que destroça, permanentemente e com muita crueldade, seu mundo interno, produzindo uma enorme dor masoquista narcísicas que tornam o sujeito isolado, apenas cercado de relações com objetos-fetiche, onde o indivíduo fica imerso num mundo de controle e de relações perversas (Green, 2005).
Então, na contemporaneidade, caracterizada não mais pelos conflitos do eu, mas pelos esgarçamentos e fragmentações, compete ao analista acolher o que encontra-se rompido, esfiapado, ou desfeito, ou desmontado, ou desnaturado, ou diluído para, assim, promover a criação de novas e toleráveis tramas no tecido mental, geralmente precário para essa sustentação. Dito de outro modo, cabe-lhe possibilitar a criação ou recriação de um continente para os conteúdos mentais (Bion, 2006). Num tempo de relações esgarçadas e líquidas (Bauman, 2008) é preciso que o analista suporte as ausências do paciente para ajudá-lo a criar espaços produtivos de trabalho analítico. Nesse tempo de vazios interiores (Kristeva, 1995), de sensorialidade excessiva (Türcke, 2010) e não simbolizada, do irrepresentável (Botella, 2002), será o analista quem irá precisar sonhar pelo paciente (Ogden, 2010; Grotstein, 2003) usando-se, para isto, de sua emoção, de sua imaginação e de sua intuição para ajudá-lo a construir representações psíquicas, talvez nunca antes alcançadas. Em relação às barreiras narcísicas– condição sempre presente num trabalho desta natureza --, a função do analista, seria a de promover o espaço necessário para o estabelecimento de uma relação, de um vínculo de proximidade e de intimidade que sustente a possibilidade de um trabalho analítico.

III 
Independentemente do momento cultural que atravesse um grupo ou sociedade, o desenvolvimento humano será sempre marcado por processos de ruptura, dos quais o modelo prototípico é o nascimento que demarca a passagem da vida intrauterina para a extrauterina. Tal ato exigirá do bebê um trabalho de respiração e de sucção. O mesmo ocorre, p. ex., com o desmame, com a passagem da infância para a adolescência e desta para a vida adulta, com as questões da sexualidade relacionadas às vivências pré-edípicas e edípicas, assim como com as inúmeras e distintas vivências de encontro e separação. Bion denominou esses processos de cesuras, que são cortes, que a um só tempo acionam novo(s) movimento(s) e permitem o trânsito entre o antes e depois. Nessas transformações, cada fase que dá surgimento à outra preserva seus registros. Assim, estas diferentes etapas coexistem, algumas se manifestando mais fortemente que outras de acordo com cada momento. Este modelo de funcionamento mental permite que se trabalhe com a perspectiva de trânsito por essas camadas, ou seja, pelas múltiplas formas de funcionamento mental (Bion, 1996).
Dentro desta perspectiva, na qual os aspectos primitivos e os aspectos amadurecidos da personalidade coexistem em relação permanente e dialética, compreende-se que, na contemporaneidade, a função do analista seja a de abrir canais de comunicação com o paciente que permitam o trânsito, a fluência emocional pelas múltiplas dimensões de seu mundo mental, estas advindas das rupturas e continuidades, próprias do evoluir da vida humana. Tal comunicação exige do analista uma ampla intimidade com sua própria mente, uma criatividade de mente sonhante e pensante capaz de atravessar essas fendas e de alcançar essas variadas dimensões. Trata-se de uma abertura e de um trânsito contínuo que o analista faz de seu consciente para o seu inconsciente e para o inconsciente do analisando; e, mais além disto, que a dupla analítica faz de inconsciente para inconsciente. A experiência emocional (Bion,1991) direcionará esta abertura, proporcionando uma relação nova entre consciente e inconsciente (Chuster, 1999).

IV 
Compreende-se que a condição interna do analista em relação ao seu trabalho analítico, hoje, não difere daquela vivida nos tempos da criação da psicanálise – a mente sonhante de Freud. Atualmente, é na vivência do desenvolvimento da sessão que o analista experiência muitas vezes estranheza, por esta estar sendo vivida como um sonho, em movimentos que surpreendem o presente e se abrem para um futuro desconhecido.
Entendendo que uma análise se dá nas tramas e intersecções entre o real e ficcional, o sonhar acordado do analista, com seus processos primário e secundário acontecendo simultaneamente, permite que certa qualidade de comunicação seja alcançada com o paciente; comunicação esta que pode ajudar a tecer o que foi esgarçado pelas rupturas vividas pelo paciente e que ele não pôde tolerar e sustentar e o levaram à fragmentação, à diluição, ao vazio, ao fortalecimento de defesas narcísicas ou à deficiência das representações.

É bem provável que atualmente nos deparemos com o analista precisando se desfazer de seus próprios credos e crenças psicanalíticas, aventurando-se corajosamente a dar ouvidos aos próprios sonhos e devaneios como via de acesso à liberação de algo que se pressupõe mais verdadeiro e que acontece entre a dupla naquele momento exato da sessão, ainda quando num primeiro instante, pareça não fazer nenhum sentido. Em outras palavras, a figura do analista contemporâneo rompeu com a figura do analista decifrador e detentor do saber (teórico/intelectual), para valorizar e vivificar a experiência emocional que o encontro com a mente do analisando lhe propicia em forma de sonhos ou devaneios.
Considerando que o que está vivo está em constante mutação, as macro e microrupturas fazem parte deste evolver. Assim, ruptura é uma invariante. Precisamos encontrar modos de intervir neste funcionamento quando a mesma se apresenta como bloqueadora do crescimento para devolver-lhe o potencial de desenvolvimento. Podemos nos referir a isso como ruptura da ruptura.
Para finalizar estas considerações, coloca-se uma questão vista como da maior importância e para a qual ainda não se vislumbram respostas: como será o analista do futuro, sendo ele um sujeito engendrado nesse universo “líquido” de nossa contemporaneidade?


Bibliografia:

BAUMAN, Z. (2008). Medo líquido. Zahar, Rio de Janeiro.
BION, W.R. (2006). Atenção e interpretação. Imago, 2ª. Ed., Rio de Janeiro.
_____, (1991). Aprendendo com a experiência. Imago, Rio de Janeiro.
_____, (1996). Uma memória do futuro vol. III: A aurora do esquecimento. Imago, Rio de Janeiro.
BOTELLA, C & BOTELLA, S. (2002). Irrepresentável: Mais além da representação. Criação Humana, Porto Alegre.
CHUSTER, A.(1999) W. R. Bion novas leituras: dos modelos científicos aos princípios ético-estéticos. Vol. 1: parte teórica. Companhia de Freud, Rio de Janeiro.
GARCIA-ROZA, L. A. (1986). Introdução à metapsicologia freudiana. Jorge Zahar, Rio de Janeiro.
GREEN, A. (2005). Ideas directrices para un psicoanálisis contemporáneo: Desconocimiento y reconocimiento del inconsciente. Amorrortu, 1ª. Ed., Buenos Aires.
GROTSTEIN, J.S. (2003). Quem é o sonhador que sonha o sonho? Um estudo de presenças psíquicas. Imago Editora, Rio de Janeiro.
HERRMANN, F. (1979). Andaimes do real: o método da Psicanálise. Casa do Psicólogo, São Paulo.
SCALIA,J.(2002). Exploring the Work of Christopher Bollas. The Vitality of Objects, London and New York: Continuum, pg. 179-222.
KON, N. M.(1996). Freud e seuduplo: Reflexões entre Psicanálise e Arte. EDUSP/Fapesp, São Paulo.
KRISTEVA, J. (1995). As novas doenças da alma. Ed. Rocco, São Paulo.
OGDEN, T. H. (2010). Esta arte da psicanálise: Sonhando sonhos não sonhados e gritos interrompidos. Artemed, Porto Alegre.
TÜRCKE, C. (2010). Sociedade excitada: filosofia da sensação. Editora da Unicamp. Campinas.
VIÑAR, M. N. (2009). Mundos adolescentes y vértigocivilizatorio. EdicionesTrilce, Montevideo.

Adriana Laura Navarrete Bianchi
Ana Rita Nuti Pontes
Maria Aparecida Sidericoudes Polacchini
Maria Lucimar Fortes Paiva Defino
Nilton Cesar Bianchi


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